segunda-feira, 10 de maio de 2010 | By: Saulo Diniz Ferreira

Sermão sobre Jó 1.1 - Parte (2/3)



Agora, havendo entendido o que há no livro, devemos prosseguir para coisas mais extensas, de modo que depreendamos, segundo o desenvolvimento da narração, aquilo em que brevemente se tocou. É dito:
Havia na terra de Hus um varão chamado Jó; e era este homem perfeito e reto, temente a
Deus e que se apartava do mal.
Não podemos nem sabemos como adivinhar quando viveu Jó: somente se percebe que foi em tempos mui remotos. Alguns judeus, inclusive, tem opinado que Moisés foi o autor do livro, e que deu este exemplo ao povo para que os filhos de Abraão, descendentes da raça desse, soubessem que Deus havia demonstrado graça a pessoas alheias a tal linhagem, para os envergonhar quando não andaram com pureza no temor de Deus; para que vissem que esse homem, que não havia recebido o sinal da aliança, que não havia sido circuncidado, porém, era pagão, conduzia-se tão bem. Ora, posto que não há absoluta certeza a esse respeito, devemos deixar em suspenso. Entretanto, tomemos aquilo do qual não há dúvidas, a saber, que o Espírito Santo ditou esse livro com o seguinte propósito: que os judeus conhecessem que Deus teve gente que, conquanto não havia sido separada do resto do mundo, conquanto não tivesse recebido o sinal da circuncisão, todavia, serviu-o com toda pureza de vida. Sabendo isto, os judeus tiveram a oportunidade de serem mais cuidadosos ainda em observar a lei de Deus, e posto que lhes havia mostrado sua graça dando a eles o privilégio de os escolher dentre todas as nações estrangeiras, deviam dedicar-se inteiramente a ele. No livro de Ezequiel (14.14) também se percebe que o nome de Jó era célebre entre o povo de Israel; porque vimos que no capítulo 14 se diz: “...se estivessem em meio dela estes três varões, Noé, Daniel e Jó, esses, por sua justiça, livrariam unicamente suas próprias vidas, e o restante do povo perder se ia totalmente”. Aqui o Profeta fala de três homens, como de pessoas certamente conhecidas e afamadas entre os judeus, tal como já o mencionamos. Vemos então o propósito do Espírito Santo, ou seja, que os judeus tivessem um espelho e um padrão para reconhecer de que maneira deviam observar a doutrina da salvação que lhes havia sido dada, já que esse homem, de origem estrangeira, havia-se preservado em tal pureza. E isto é o principal que temos que reter do nome aqui mencionado, quando se diz que era da terra de Hus. Por certo, alguns situam essa terra bem mais a oriente; porém, nas Lamentações de Jeremias (4.21) a mesma palavra é usada para indicar uma parte de Edom. Sabemos que os edomitas eram descendentes de Esaú. É certo que conservavam ainda a circuncisão, mas, pelo muito que esses se tinham distanciado da Igreja de Deus, já não mais havia sinal da aliança. Então, se aceitarmos que Jó era de Hus, era ele um edomita, ou seja, da linhagem de Esaú. Ora, sabemos o que foi dito pelo Profeta (Malaquias 1.2), que, apesar de Esaú e Jacó serem irmãos gêmeos, de um mesmo ventre, Deus, em sua bondade pura, havia elegido a Jacó e rejeitado a Esaú, a quem amaldiçoou junto com toda a linhagem desse. Eis como o Profeta o expressa para exaltar a misericórdia de Deus para com os judeus; mostra-lhes que os havia escolhido, não por alguma dignidade peculiar a suas pessoas, fazendo com que vissem que havia rejeitado ao irmão mais velho de Jacó, a quem correspondia a primogenitura, e que, por outro lado, elegeu o mais novo e inferior. Então, ainda que esse homem fosse descendente da linhagem de
Esaú, vemos, não obstante, em que integridade viveu, e como serviu a Deus, não somente relacionando-se com os homens em retidão e eqüidade, mas tendo uma religião pura, não contaminada com as idolatrias e superstições dos incrédulos. Quanto ao nome “Jó”, é certo que alguns o traduzem como “chorando” ou “lamentando”; mas outros o interpretam como “um homem de inimizade”; não querendo dizer que tenha odiado, mas que era como um alvo ao qual se podia disparar. Não temos que duvidar que esse homem, cujo país figura aqui, cujo nome se expressa, foi real e que verdadeiramente viveu, e que as coisas aqui escritas realmente ocorreram; para que não pensemos que esse é um conto inventado por um homem, o qual, sob um pseudônimo, propõe-nos coisas aqui que nunca ocorreram. Já apresentamos o testemunho de Ezequiel e São Tiago, os quais mostram que Jó existiu de fato. Além disso, visto que a própria história o declara, não devemos apagar o que o Espírito Santo quis dizer de forma tão notável. De resto, temos que observar, com respeito àquela época que, apesar de o mundo estar afastado do verdadeiro serviço a Deus e da religião pura, entretanto, havia muito mais integridade que hoje, inclusive no Papado. Com efeito, vemos que desde o tempo de Abraão, Melquisedeque conduzia a Igreja de Deus e os sacrifícios, os quais estavam sem profanação alguma. De forma que, apesar de que a maior parte do mundo estava contaminado, apesar de que a maior parte do mundo estava envolta em muitos erros, em falsas e malvadas fantasias, no entanto, Deus havia reservado alguma pequena semente para si, e sempre teve ele alguém que foi mantido sob a verdade pura, sim, a qual de contínuo esperava quando Deus estabeleceria sua Igreja e escolheria um povo (a saber, a descendência de Abraão) a fim que de que eles soubessem que foram separados do restante do mundo. Ora, é bem verdade que Jó viveu em uma época em que a Igreja de Deus, todavia, não estava tão desenvolvida quanto estaria depois; sabemos que, aparentemente, os filhos de Israel, enquanto viviam no Egito, haveriam de ser aniquilados. Inclusive, vemos a que extremos chegaram ao final quando Faraó ordenou a morte dos varões; e, no deserto, pareceria ainda que eram rejeitados por Deus; havendo chegado à terra de Canaã tiveram grandes lutas contra seus inimigos e, inclusive, o serviço de Deus não estava ainda estabelecido, tampouco o tabernáculo, como se havia requerido. Deus, não havendo estabelecido ainda uma forma de Igreja que fosse visível, quis que sempre houvesse uma pequena semente entre os pagãos para ser por ela adorado, e também para condenar aqueles que, como os pagãos, haviam se apartado do reto caminho; porque Deus não precisou senão de Jó para que fosse juiz de toda uma nação. Assim também Noé condenou todo o mundo, como diz as Escrituras, pois que se manteve ele sempre em pureza, caminhando como que perante Deus, em uma época em que todos se tinham olvidado desse e se desviavam nas próprias superstições. Eis então Noé como juiz do mundo inteiro, para condenar aos incrédulos e rebeldes. Foi assim que Jó condenou todos os dessa região, porque servia a Deus com pureza, enquanto os outros estavam cheios de idolatrias, infâmias e muitos erros: e isso aconteceu porque a gente não quis reconhecer Aquele que é o Deus verdadeiro e vivente, nem entender como e de que maneira queria ser honrado; contudo, Deus sempre considerou que (como já se disse) os malvados e incrédulos deviam ser reputados inescusáveis. Por isso, sempre quis que houvesse algumas pessoas que seguissem o que ele declarou aos antigos Pais. Tal se deu com Jó, segundo nolo apresenta as Escrituras, e a narração nos mostra bem com que pureza servia a Deus, vivendo entre os homens com toda a retidão. Diz-se aqui que esse homem era íntegro. Ora, nas Escrituras, esta palavra é usada de forma genérica, indicando que não há falsidade nem hipocrisia em um homem, sendo que o que se vê exteriormente é o que existe no interior, e que não se conserva um lugar no fundo para se apartar de Deus, mas que seu coração e todos os seus pensamentos e afeições são expostos, sem outra aspiração que não a de se consagrar a Deus e se dedicar por inteiro a ele. Essa palavra foi traduzida como “perfeito” tanto por gregos quanto por latinos; porém, dado que posteriormente a palavra “perfeição” teve um uso impróprio é muito mais preferível utilizar a palavra “integridade”. Porque muitas pessoas ignorantes, desconhecendo o sentido de tal perfeição, pensaram: “Aqui há um homem que é descrito como perfeito, do que se deduz que podemos ser perfeitos por nós mesmos, enquanto andamos nesta vida”. Ofuscaram a graça de Deus, da qual sempre carecemos; porque aqueles que desejam andar com a maior retidão ainda necessitam ter seu refúgio na misericórdia divina; porque se seus pecados não lhes forem perdoados, e se não forem sustentados por Deus, eis que todos perecerão. Dessa forma, pois, conquanto tenham um bom propósito os que usam a palavra perfeição, todavia, visto alguns a terem distorcido para um sentido contrário (como eu disse), conservemos a palavra integridade. Então temos aqui Jó sendo chamado “íntegro”. Como? É porque não havia hipocrisia nem falsidade nele, porque não era de coração dobre; porque a Escritura, quando deseja se referir ao oposto da virtude da integridade, fala de “coração e coração”, isto é, de “coração dobre”. Notemos então, primeiramente, que esse título é atribuído a Jó para destacar que era ele de um afeto puro e simples, e que não era duas caras, que não olhava para um lado com um olho e, com o outro, para o oposto; que não servia a Deus pela metade, mas que labutava para se entregar inteiramente a ele. É certo que jamais alcançaremos integridade tal que cheguemos a essa meta, como seria de se desejar; pois que os que seguem o caminho direito, ainda que coxeando por ele, são sempre débeis, arrastando as pernas e as asas. Isso, pois é o que nos ocorre enquanto estamos sujeitos a esse corpo mortal, até que Deus nos tenha livrado de todas essas misérias, as quais estamos atados, não alcançaremos, como dissemos, uma perfeita integridade. No entanto, devemos chegar a essa sinceridade, e devemos renunciar a toda pretensão e falsidade. Ademais, notemos que a verdadeira santidade começa no interior; mesmo que no mundo tenhamos a melhor aparência diante dos homens, e mesmo que conduzamos nossas vidas tão bem que o mundo nos aplauda se não tivermos essa sinceridade e integridade perante Deus, de nada nos servirá. Pois a fonte tem que ser pura para que as águas saiam puras; do contrário, a água, ainda que seja clara, contudo terá sabor amargo, ou estará contaminada de algum outro modo. Então, sempre temos que começar pelo que está estabelecido, isto é:
“Deus deseja ser servido em espírito e com sinceridade de coração” como se diz em Jeremias (5.3). Então, em primeiro lugar temos que aprender a sujeitar nosso coração à obediência a Deus.

De João Calvino (1509-1564)

Por Saulo Diniz Ferreira - Brasília DF

Permissões: Você está autorizado e incentivado a reproduzir e distribuir este material em qualquer formato, desde que não o altere de nenhuma maneira e não use para fins comerciais. Para postagens na web, um link para este documento para a fonte original do material é o preferido. (Basta copiar os itens acima)

0 comentários:

Postar um comentário