quarta-feira, 12 de maio de 2010 | By: Saulo Diniz Ferreira

Sermão sobre Jó 1.1 - Parte (3/3)



Ora, uma vez que Jó foi chamado “íntegro”, também se diz que foi
“reto”; tal retidão faz referência à vida que levou, a qual era fruto dessa raiz que o Espírito Santo havia outrora plantado. Então, foi reto e íntegro o coração de Jó? A vida de Jó era singela, ou seja, andava e vivia com seus próximos sem prejudicar a ninguém, sem ferir ou molestar a quem quer que seja, sem se por a pensar em fraudes ou malícias, sem buscar seu próprio benefício às custas de outrem. Esse é, então, o significado da “retidão” que se acrescenta aqui. Ora, com isso se nos admoesta a que haja harmonia entre o coração e os sentidos exteriores. É certo (como eu já disse) que podemos nos abster de fazer o mal e bem podemos ter uma bela aparência diante dos homens, mas de nada nos servirá se, examinando a raiz que está em nosso coração, notamos hipocrisia e fingimentos ocultos diante de Deus. Então, o que devemos fazer? Que comecemos, como eu disse, com este ponto. Portanto, para se ser íntegro, os olhos e as mãos, bem como os pés, os braços e as pernas têm que corresponder, porque com toda a nossa vida declaramos que anelamos servir a Deus e que não é vão o nosso testemunho 4 de querermos ser íntegros em nosso interior. E é por isso também que São Paulo exorta aos Gálatas (5.25) para que caminhem segundo o Espírito, se vivem segundo o Espírito: como se ele dissesse, verdadeiramente, o Espírito de Deus deve morar em nós e nos governar; porque de nada serviria termos uma bela vida, agradarmos aos homens e sermos grandemente estimados se não formos renovados pela graça de Deus. E depois? Temos que andar, isto é, devemos demonstrar com feitos e com nossas obras de que maneira o Espírito de Deus reina em nossas almas; porque, se nossas mãos estiverem contaminadas, seja por furtos, seja por crueldades ou outros danos, se tivermos os olhos infectados de olhadas más e imodestas, cobiçando os bens alheios, ou se somos orgulhosos e nossos pés correm vaidosos para o mal (como se diz nas Escrituras) estaremos demonstrando que o coração está cheio de malícia e corrupção; porque não há pés, nem mãos, nem olhos que se conduzam por si próprios; a direção provém do Espírito e do coração. Então, aprendamos a ter a conformidade que as Escrituras nos mostram nessa passagem, ao dizer que Jó, tendo essa integridade e sinceridade, também vivia retamente, ou seja, que se relacionava com seus próximos sem lhes causar prejuízo, sem buscar seu proveito particular, mas mantendo uma eqüidade com todo mundo. Deus quer também nos provar quanto a esse assunto: quer ver se servimos ou não a ele com fidelidade; não é que precise de nosso serviço ou de tudo aquilo que possamos fazer por ele; mas, se praticamos o bem para com o nosso próximo e somos leais uns para com os outros, como inclusive a natureza nos ensina, então estaremos dando testemunho de nosso temor a Deus. Vemos muitos que aparentam ser mui zelosos quando se trata apenas de debater e manter muitas conversações com o fito de afirmar que estudam como servir e honrar a Deus: entretanto, assim que têm que tratar com seus próximos, fica conhecido o que há em seus corações, porque buscam a sua própria vantagem, sem que lhes pese na consciência levar água ao seu próprio moinho, enganando quando tem o poder de fazê-lo, por todos os meios ao seu alcance. Então, aqueles que buscam sua vantagem e proveito — os quais são indubitavelmente hipócritas e têm coração corrompido — por mui excelentes zelotes que sejam, Deus declara que no coração deles só tem imundícia e veneno. E por quê? Se há sinceridade é preciso que haja também retidão, isto é, se no interior o afeto é puro, ao nos relacionarmos com os homens, procuraremos o bem de cada um deles, sem sermos dados a nós mesmos e a nossos interesses particulares, mas teremos a eqüidade que Jesus Cristo declarou ser a regra da vida e o resumo de toda a Lei e os Profetas, isto é, que a ninguém façamos senão o que queremos que se nos faça a nós Então, observemos que nesse elogio a Jó muita gente é condenada pela declaração do Espírito Santo de que esse homem não somente era íntegro diante de Deus, mas reto e sincero entre os homens. Essa sinceridade de que aquele fala servirá de sentença e condenação a todos aqueles que estiverem cheios de malícia, para aqueles que somente pretendem roubar e se capturar o que pertence a outros. Os tais são condenados por essa palavra.

Agora se segue dizendo: E era este homem temente a Deus e apartado do mal.
Além disso, se Jó foi elogiado por haver guardado a retidão e a eqüidade entre os homens, era de todo imprescindível que também tivesse caminhado diante de Deus; porque sem isto, o resto de nada vale. Não podemos deveras viver com nossos semelhantes (como eu já o disse) sem fazer mal a ninguém, procurando o bem de todos, se não nos lembramos de Deus. Porque aqueles que seguem a sua natureza, ainda que tenham belas virtudes (aparentemente) estão, apesar dessas, preocupados consigo mesmos, levados unicamente pela ambição ou alguma outra consideração, toda a aparência de virtude neles fica corrompida por isto. Mas, ainda que não sejamos capazes de alcançar essa retidão sem temer a Deus, há aqui duas coisas distintas: 1) servir a Deus e 2) honrar ao nosso próximo, como também Deus as têm distinguido em sua Lei quando quis que fossem explicadas em duas tábuas. Notemos então que, pondo diante de nós a palavra “retidão” o Espírito Santo quis declarar como se conduzia Jó entre os homens; da mesma maneira quando diz que esse era “temente a Deus”, quis destacar a religião que havia nele. Ora, com isto se nos admoesta que, para bem governar a nossa vida, devemos nos lembrar de Deus e, depois, de nossos semelhantes; recordemo-nos de Deus, digo, para nos entregarmos a ele, para prestarmos a veneração (hommage) que lhe é devida; recordemo-nos de nossos próximos para sermos conscientes de nossa responsabilidade para com eles e para os ajudar, conforme somos admoestados, a viver equilibrada e retamente; já que Deus nos uniu, que cada um esteja atento para usar todas as suas faculdades para o bem comum de todos. Eis como devemos considerar tanto a Deus como aos homens, a fim de bem ordenar nossas vidas. Porque o que somente considera a si próprio certamente só tem em si vaidade; pois se uma pessoa quer ordenar sua vida de forma que aos olhos dos homens não haja defeitos naquela, e se Deus a desaprova, de que lhe haverá aproveitado tanto esforço para andar de modo que todos o exaltem? Diante de Deus apenas haverá corrupção, e as palavras escritas por São Lucas (16.15) terão que ser cumpridas: “o que os homens têm por sublime, diante de Deus é abominação”. Notemos então que nunca seremos capazes de ordenar adequadamente nossa vida se não tivermos os olhos postos em Deus e em nossos semelhantes. Por que em Deus? Para que saibamos que fomos criados para glória sua, para o servir e adorar; pois, ainda que não tenha necessidade de nós como nossos próximos a têm, e isso o não afete em nada, não obstante, ele quer ter criaturas prudentes, que o reconheçam e que, havendo-o reconhecido, restituam a ele o que lhe pertence. Ademais, quando se fala do temor a Deus, notemos que não se trata de um temor servil (como se o chama) senão de prestar-lhe a honra devida, posto que é nosso Pai e Senhor. Tememos a Deus? Decerto que se nos exige honrálo e sermos totalmente seus. Conhecemo-lo? Que isso seja em consonância com os atributos que ele declara serem seus, isto é, ele é nosso Criador, é nosso Sustentador, aquele que nos mostra tal bondade paterna que, indubitavelmente, seremos seus filhos se não quisermos ser excessivamente ingratos com ele. Também temos que reconhecer o senhorio e superioridade dele sobre nós, para que lhe prestemos a honra que lhe é devida, cada um de nós aprenda a agradá-lo em tudo e por tudo. É dessa forma, sob o termo “temor de Deus” que está compreendida toda a religião, a saber, todo o serviço e veneração que as criaturas devem ao seu Deus. Ora, em Jó foi uma virtude mui excelente temer a Deus, sendo que todo o mundo se havia afastado do reto caminho. Ao ouvir isto, aprendamos que não teremos desculpa ainda que andemos entre os piores párias do mundo, de não estarmos entregues ao serviço de Deus como devemos estar. Ora, isto deve ser bem destacado, porque muitas pessoas crêem que, por estarem entre espinhos, estão absolvidas e bem escusadas; e, se depois se corromperem e uivarem entre os lobos (como se diz), isso não importa, pois que Deus as perdoará. Pelo contrário, eis aqui Jó, descrito como temente a Deus. Em qual país? Não é na Judéia, nem na cidade de Jerusalém, tampouco no templo: mas é em um lugar contaminado, no meio daqueles que se perverteram totalmente. E estando pois entre semelhante gente, todavia foi preservado, vivendo de maneira a andar em pureza com seus semelhantes, conquanto todos esses estivessem cheios de crueldades, ultrajes, pilhagens e coisas tais. Notemos que isto nos tornará muitíssimo mais vergonhoso se, de nossa parte, não considerarmos como nos preservar puros para o serviço de Deus e do nosso próximo, quando ele nos der uma ocasião tal como a que agora temos, isto é, que a palavra de Deus é-nos pregada todo dia 7 para sermos exortados e corrigidos quando houvermos falhado. Então, devemos estar atentos ao que aqui se nos mostra.

Agora, concluindo, observemos bem o que aqui se adiciona ao texto: era este homem... Apartado do mal. Porque é assim que este homem superava todas as dificuldades e lutas que o podiam ter impedido de servir a Deus e de viver retamente no meio dos homens; ele mesmo se lembrava de saber bem que, se houvesse permitido a si fazer o que os outros faziam, teria sido um homem completamente devasso e teria se convertido em inimigo de Deus. Então, Jó não andou com tal sinceridade e integridade no temor de Deus sem ter muitas lutas, sem que o maligno tivesse a intenção de pervertê-lo e levá-lo a todas as corrupções do mundo; mas ele se apartava do mal, ou seja, absteve-se. O que então nós temos que fazer? Apesar de estarmos na Igreja de Deus, todavia, veremos muitos males; e (ainda que devesse haver) nunca haverá sinceridade ou pureza tais que fiquemos livres de nos misturar entre muitos escarnecedores, gente corrompida que, como tições do inferno, pestes mortíferas, infectam a todos. Devemos pois nos manter em guarda, visto como há grandes escândalos e dissoluções que nos corromperiam incontinenti. O que fazer então? Apartemo-nos do mal, ou seja, batalhemos contra tais assaltos seguindo o exemplo de Jó; e quando vemos que muitos vícios e corrupções reinam no mundo, mesmo que tenhamos de nos misturar entre eles, todavia, que não nos manchem, nem digamos, como os homens estão acostumados a dizer, que devemos uivar entre os lobos; mas devemos seguir o conselho do exemplo de Jó, apartando-nos do mal, e apartando-nos de tal modo que Satanás não possa, por meio de todas as tentações que porá diante de nós; contudo, que permitamos que Deus nos purifique de toda a nossa imundície e corrupção (segundo o que Ele nos prometeu no nome de nosso Senhor Jesus Cristo), até que nos haja limpado das manchas e contaminações deste mundo, para nos reunir com seus anjos e nos fazer partícipes da felicidade eterna à qual devemos ora aspirar.

Agora nós nos apresentaremos perante a face de nosso bom Deus...

De João Calvino (1509-1564)

Por Saulo Diniz Ferreira - Brasília DF

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