terça-feira, 4 de maio de 2010 | By: Saulo Diniz Ferreira

Sermão sobre Jó 1.1 - Parte (1/3)


Havia na terra de Hus um homem que tinha por nome Jó; íntegro, reto e
temente a Deus, e que se apartava do mal.


Para bem aproveitarmos o que está contido no presente livro, em primeiro lugar, devemos saber qual o seu sumário. Ora, a história que está aqui escrita mostra-nos de que modo estamos nas mãos de Deus, que é coisa sua ordenar nossas vidas e delas dispor conforme a sua boa vontade, bem como que é dever nosso submetermo-nos a ele com total humildade e obediência; é bem razoável que sejamos de todo seus, tanto para viver quanto para morrer; mesmo quando ele quiser erguer contra nós a sua mão; ainda que não percebamos qual a causa dele assim agir, todavia, que o glorifiquemos sempre, reconhecendo que é justo e imparcial, sem murmurar nem discutir contra ele, sabendo bem que, sempre que disputarmos com ele, seremos derrotados. Resumindo, isto é pois o que temos que reter dessa história, ou seja: Deus possui tal poder sobre suas criaturas que é direito seu delas dispor segundo lhe aprazer; e, quando exibir um rigor que inicialmente se nos pareça estranho, contudo, que fiquemos de boca fechada para em nada murmurar: mas prefiramos confessar que ele é justo e esperemos que nos declare o porquê de nos castigar. Entretanto, temos que contemplar, como nos exorta São Tiago (5.11), a paciência do homem posto aqui diante de nós: porque, quando Deus nos mostra que devemos sofrer todas as misérias que ele nos vai enviar, bem confessamos que é nossa obrigação; não obstante, alegamos nossa fragilidade e parece-nos que isso deveria servir para nós como desculpa. Por isso, é bom termos exemplos para nos mostrar que existiram homens frágeis como nós, os quais, contudo, resistiram à tentação, perseverando com constância na obediência a Deus, ainda que esse os afligisse até o limite. Ora, temos aqui um excelente exemplo disso.

Além do que, não só temos que considerar a paciência de Jó, mas igualmente seu resultado, como também diz S. Tiago: porque, se Jó tivesse continuado confundido, ainda que sua virtude tivesse sido mais que angelical, o fim da história não teria sido feliz. Porém, quando vemos que não foi decepcionado em sua esperança e que achou graça na proporção em que foi humilhado diante de Deus, vendo esse final, temos que chegar à conclusão de que não há nada melhor para nós do que nos submetermos a Deus e pacificamente sofrer tudo o que ele nos mande até que, pela sua bondade pura, livre-nos. Contudo, mais além na história temos que considerar a doutrina que este livro encerra; a saber, a doutrina daqueles que se achegam com o pretexto de consolar a Jó, mas que o atormentam muito mais do que a própria enfermidade desse, e as respostas com que rechaça as calúnias deles, com as quais aparentemente querem oprimi-lo. Mas, em primeiro lugar, devemos observar, quanto às nossas aflições, que, apesar de Deus as enviar e dele procederem, não obstante, é o diabo quem as provoca contra nós, como também nos adverte São Paulo, que guerreamos contra os poderes espirituais (Ef 6.12). Porque, quando o diabo acende o fogo, também faz vento, isto é, também encontra pessoas de sua propriedade para aguilhoar-nos continuamente, prolongando e aumentando a dor. Veremos então como Jó, além da enfermidade que suportou, foi atormentado por seus amigos, por sua esposa e, sobretudo, por aqueles que vieram para o tentar espiritualmente.
Ora, chamo de uma tentação espiritual quando não somente somos açoitados e afligidos em nossos corpos; mas quando o diabo trabalha de tal modo em nossos pensamentos que Deus se nos torna inimigo mortal, ao qual já não podemos ter acesso, convictos de que nunca mais será misericordioso para conosco. Vede a que todas as proposições feitas pelos amigos de Jó tendiam: persuadi-lo de que era um homem rejeitado por Deus e que se enganava ao cuidar que Deus lhe seria propício. Ora, tais lutas espirituais são muito mais difíceis de sobrelevar que todos os males e adversidades que podemos sofrer ao sermos perseguidos. De qualquer maneira, Deus solta os freios que amarram Satanás para que esse possa levar consigo seus servos, os quais nos assaltam de modo tal como o que, segundo veremos, teve que suportar Jó.

Basta com este ponto. No entanto, temos também que notar que, ao longo de toda a disputa Jó defende uma boa causa, enquanto seus adversários defendem uma causa má. Mais que isso, Jó, tendo uma boa causa, faz uma defesa pobre, enquanto que os outros, tendo uma causa ruim, fazem uma boa defesa. Quando tivermos entendido isto, ser-nos-á como uma chave para nos abrir todo o livro. Como é que Jó sustenta uma boa causa? É que ele sabe que Deus nem sempre aflige os homens conforme a medida de seus pecados, mas que tem seus juízos ocultos, dos quais não nos presta contas, e que temos que esperar até que ele nos revele a razão de fazer isto ou aquilo. De forma que Jó estava totalmente convencido que Deus nem sempre aflige os homens segundo a proporção de seus pecados; dessa maneira, tinha em si próprio um testemunho de não ser um homem repudiado por Deus como eles queriam lhe fazer crer. Eis uma causa boa e verdadeira que é, no entanto, mal apresentada: porque agora Jó sai do sério e faz proposições excessivas e enormemente más, de sorte a demonstrar que, em muitos sentidos, é um homem desesperado. Jó está tão exaltado que, aparentemente, queria resistir a Deus. Conseqüentemente, temos aqui um bom caso, mal conduzido. Ora, de maneira contrária, os que defendem a causa má — que Deus sempre castiga aos homens conforme a medida de seus pecados — têm belas e santas máximas, nada havendo em suas proposições que não devamos receber, como se o Espírito Santo as houvesse pronunciado: pois que são a pura verdade, constituem os fundamentos da religião, tratam da Providência de Deus, de sua justiça e do pecado dos homens. Então, temos aqui uma doutrina a qual temos que receber sem contradições, mesmo que o resultado procurado por essa gente, o de levar Jó ao desespero e precipitá-lo no abismo, seja completamente mal. Em tudo isso vemos que, tendo um bom fundamento, devemos considerar como edificar sobre ele, de maneira que tudo se harmonize, tal como o declara São Paulo (1 Co 3.10) ao afirmar que edificou desde que fundou a Igreja sobre a pura doutrina de Cristo: para que haja tal conformidade que aqueles que viessem depois dele não usassem como fundação nem palha, nem feno, nem material inservível (caducque), mas que haja um bom fundamento, firme e sólido. De modo que, ao longo de toda a nossa vida, devemos examinar se estamos fundados em uma boa e justa razão: cada um deve estar alerta para não ceder nem se desviar para aqui e para acolá, porque nada é mais fácil do que perverter uma causa boa e justa, conforme a nossa natureza corrompida, a qual experimentamos a todo instante. Deus haver-nos-á mostrado sua graça dando-nos uma boa causa, mas, de igual modo, seremos aguilhoados por nossos inimigos para que não possamos nos controlar nem seguir simplesmente ao que Deus nos ordena sem acrescentar algo de nós mesmos no lugar. Então, vendo que tão facilmente nos desencaminhamos, temos que orar tanto mais a Deus para que, quando nos tiver dado uma boa causa, guie-nos com toda a singeleza por seu Espírito Santo para que não passemos dos limites que ele nos tem traçado em sua palavra. Por outro lado, também somos admoestados a não aplicar a verdade de Deus para um mau uso: seria profaná-la, como essa gente aqui; malgrado ela falar coisas santas (como já o temos declarado, e como ainda veremos de maneira mais completa), é sacrílega, porque corrompe a verdade de Deus, abusando dela com falsidade, aplicando a um mau propósito o que em si é bom e justo. De modo que, quando Deus nos tem feito conhecer sua palavra, aprendamos a recebê-la com temor tal que jamais a empreguemos para ofuscar o bom nem tornar atraente o que é mau, como amiúde se sucede com os mais inteligentes e os mais sábios, que dão à larga abusando do conhecimento que Deus lhes há dado, fazendo fraudes e malícias, transtornando tudo, de forma que só se enredam a si mesmos. Vendo que o mundo é apegado a tais vícios, devemos orar mais ainda para que Deus nos dê a graça de aplicar sua palavra ao uso que ele quer, isto é, a um uso puro e simples. Em resumo, isto é o que devemos observar.

De João Calvino (1509-1564)

Por Saulo Diniz Ferreira - Brasília DF

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